Magicka não é Ciência
Em seu artigo: “O Mago como Físico Rebelde“, Peter Carroll argumenta a favor da incorporação na magicka das ‘teorias especulativas da ciência avançada’, que ele considera como oferecedora de uma magicka mais criativa do que aquela baseada em visões de mundo e cosmologia antigas. Sua sugestão é a de um equivalente mágico ao colapso do antropocentrismo da Idade Média durante a Renascença, que é correlata a expansão dos horizontes europeus.
O colapso foi acelerado pela chegada das primeiras ondas do expansionismo europeu em que não apenas foram abolidas cosmologias não-científicas, mas também a própria vida das pessoas “selvagens e primitivas” que as sustentavam. A expansão da visão racionalista do mundo não afetou só os não-europeus, também contou com a destruição do modos de vida e padrões de pensamento criados pela revolução agrícola, na própria Europa neolítica. A ligação entre a terra e o povo foi quebrada, não pelo cristianismo, mas pela ciência e pela industrialização. O conhecimento do mundo como um todo construído ao longo de inúmeras gerações, foi substituído pelo conhecimento sem corpo abstrato da racionalidade científica.
Mas, ao criar mentes sem corpo, a racionalidade científica também criou corpos sem mente. De escravos à trabalhadores, das plantas aos animais, para o mundo e o universo além. Assim como um punhado de europeus sob o imperialismo tentou controlar as vidas de milhões de não-europeus, um punhado de cientistas tentam definir a realidade tal como percebida pelos não-cientistas ao redor do mundo, por acreditarem que só o conhecimento científico é um conhecimento “verdadeiro”. Tudo o mais é ilusão. Tal absolutismo vai bem além das tentativas das elites religiosas ou políticas de controlar as crenças. Na verdade, se estende agora a uma tentativa de negar-nos a consciência em si.
Para ‘pensadores’ como Daniel Dennet, nós somos todos zumbis, nossa complexidade é reduzida a ação de miríades de sub-sistemas robóticos. Sendo assim, ‘robôs’ (um termo usado para descrever tanto os genes como os neurônios) são sem consciência, e não passam de um acúmulo de outras sub-entidades sem mente. Nós somos portanto também entidades sem mentes enganados pela ilusão de uma consciência.
Mas aqui, a própria palavra “robô” contradiz a origem destas especulações. A palavra foi extraída por Karel Kapek do russo Slavik robotnik que quer dizer trabalhador. Trabalhadores (de qualquer tipo) em uma economia industrial são proibidos de usar seus próprios conhecimentos e habilidades, são proibidos de pensar por si mesmos, de serem humanos no lugar de ciborgues. Mas esta negação da humanidade é critica ao avanço do conhecimento científico, uma vez que depende de instrumentos (seja aceleradores de partícula ou computadores) para analisar dados. Instrumentos que por sua vez requerem a desumanização do processo de industrialização para serem produzidos. O conhecimento científico, portanto, é gerado pela supressão da humanidade. É essencialmente conhecimento opressivo, historicamente enraizado na destruição de pessoas e culturas e na continua marginalização dos caminhos alternativos (com visão do todo) de conhecimento do mundo nas economias industrializadas.
Cosmologias refletem estruturas sociais. O fato de poucas pessoas compreenderem a cosmologia científica é um reflexo de nossa inabilidade de entender nossa própria sociedade. Mitos religiosos podem “cair em pueril insignificância” em comparação, mas fora do monoteísmo, estão focados no sentido e significado da existência humana em um cosmos não humano cheio de vida e consciência. Eles dependem da habilidade de rituais para dar significado aos participantes – não como um sistema abstrato de conhecimento, mas na própria carne, como conhecimento vivo que não faz parte de um progresso linear, mas ocorre de uma vez aqui e agora e incluí o passado e o futuro.
Tal conhecimento não é facilmente transmitido pela linguagem abstrata ( incluindo este artigo), mas requer uma fusão criativa do mito com o rito. Quanto esta união ocorre nós nos identificamos em nossos corpos com eles e nos lembramos das memórias suprimidas que eles contêm. Tais memórias não são individualistas, mas coletivas; são o que somos, mas inatingíveis pelos machucados.
Imagine que somos zumbis. Imagine a dor de um zumbi lembrando de si mesmo, de tornar-se um corpo sem mente e uma mente sem corpo.
Subjetivo/Objetivo, Self/Outros, Religião/Ciência, como em um dos slogans de Crowley, “O método da ciência, a meta da religião”, que uma vez Peter Carroll louvou. No mínimo, isso pode permanecer como sendo uma característica particular da magia.
Para resumir: Ao descartar o conhecimento não-científico do mundo e tentar colocar a magia dentro da racionalidade abstrata da ciência, a posição de Peter Carroll se submete a aplicação da navalha de Occam. (Entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade.) A ciência é um sistema absolutista e totalitário que, nos últimos 300 anos, excluiu a magia de suas descrições da realidade. A posição da ciência apenas coloca magia e religião como ilusórios.
Eu posso ter entendido mal a posição de Peter Carroll no artigo, uma vez que ele parece estar se retratando de uma sugestão do Liber Kaos de que Ciência, Religião e Magick são paradigmas distintos e que a medida que a ciência declinasse, magicka se tornaria o paradigma dominante, assim como a religião antes deu lugar a ciência. Uma especulação alternativa seria considerar a ciência uma poderosa forma de magick, na qual a crença racional sustentada por gerações de cientistas enquanto uma coletividade formaram a realidade e participaram na criação da estrutura matemática formal que acredita ter descoberto.
Neste caso, sucessivos atos de magicka lembrando nos mesmos como “consciências encorporadas/corpos conscientes” poderiam resultar na criação de uma realidade pós-científica (ou seja, mágicka) na qual pareceria tão inegavelmente verdadeiro quando o corpos de conhecimentos científicos e religiosos nos pareceram no passado.
E o que mais?
A Ciência geralmente é dada como tendo origem na Filosofia Grécia, cerca de 2500 anos atrás; Ainda que só nos últimos 300 anos dentro da esfera de dominância Europeia ela tenha atingido a posição de conhecimento privilegiado. Ela ainda não penetrou muito profundamente nos sistemas de crença da maioria da humanidade. Permanece um conhecimento elitista e existe para servir aos avanços e estrutura das relações globais de poder. Em muitos cenários futuros – o efeito do aquecimento global, escassez de combustível fóssil, tragédias naturais de larga escala – a fundação que permite a atual pesquisa acadêmica existir no espaço/tempo para testar suas teorias irão desaparecer.
De repente as luzes vão se apagar. Nós estaremos sentados no escuro perguntando quando virá nossa próxima refeição. Neste ponto exercícios magickos de especulações sobre física quântica não serão nada úteis. (CERN precisa de muita eletricidade para funcionar) A Magick dos sobreviventes produzirá melhor resultados. Tais magickas existem. Por exemplo: Santeria, que preservou o conhecimento Africano da escravidão e migração forçada de continentes. Tais magickas sobreviveram porque estão apoiadas em raízes profundas do conhecimento no lugar de textos acadêmicos.
Entretanto, eu não estou sugerindo a rejeição do conhecimento científico. O que quer que venha a frente, a física nuclear continuará a caçar nossos descendentes por milhares de anos. Ciência é de fato uma poderosa magicka. A necessidade não é a de sujeitar a magicka a visão singular da ciência, mas pela absorção da ciência na esfera da magicka. Tal magicka seria bem penosa, não podemos cair na armadilha do Neo-Paganismo, leia-se a rejeição do passado. A magicka deve ser confiante e poderosa o bastante para a aceitar a responsabilidade do poder destrutivo da ciência, da indústria, do império e da opressão, e ainda ser capaz de equilibrar esta aceitação com a vontade de agir para além do desejo de “prover a si mesmo de dinheiro, sexo, poder e diversão as custas de todo ambiente sócio-político.
A questão principal é o Respeito. Respeito por nosso próprio poder como magistas e respeito pelo poder dos outros, o que inclui o ambiente não-humano (natureza). Isso não pode ocorrer numa relação senhor/escravo subjetivo/objetivo. E isso é alienígena ao sistema científico que é uma crença solipicista de que apenas a razão existe. Respeitar o outro não significa concordar com ele ou ser igual a ele. Tem haver com desafiar e ser desafiado, argumentar e debater como iguais. Ciência se recusa a aceitar isso. Magicka é obrigada a isso, ou se torna não mais que uma ilusão, como toda fantasia da Nova Era. Porque o espírito do xamã norte-americano revelaria seus segredos aos descendentes do povo que destruiu sua cultura? A resposta mais provável do xamã seria dizer: “Fodam-se e morram.”
Não revela a verdade sobre o mundo, mas é um sistema auto-referente no qual os cientistas refazem a si mesmos a mesma pergunta que haviam feito. Por tratar a natureza com respeito magicka oferece uma abordagem alternativa. Não é uma opção fácil, mas é por isso que magick é vista como ‘perigosa’ tanto pela ciência como pela religião. Não porque é uma ilusão, mas porque pode levar a perturbadora realidade de que o mundo é essencialmente maior do que a compreensão humana, e a consequência disso, uma vez que a humanidade está no mundo, mais do que criado por Deus, nós somos incapazes de saber de fato a verdade por nós mesmos.
A Ciência é portanto a busca de uma ilusão. A ilusão do ‘verdadeiro conhecimento’ que é absoluto, eterno e inquestionável. É equivalente as religiões monoteístas onde a palavra ‘deus’ foi substituída pela palavra ‘razão’. Magick é confusa para estes dois pois é pluralista, e oferece entendimentos e significados no lugar de ‘conhecimento’. Um entendimento e significado que nasce da união da imaginação (mente) e ações (corpo). Agindo nos mitos por meio de rituais. Da maneira como eu entendo, magick é distinguível de ciência por esta diferença: o mago muda por meio da magia; o cientista não muda por meio da ciência.